Revista Polo Rio



A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de
manchas brancas que eram ossadas

(Graciliano Ramos, “Vidas Secas”).


 As riquezas inauditas na obra de Raimundo Rodriguez



Há mais de 20 anos o artista plástico Raimundo Rodriguez vem construindo um inventário
diversificado de formas, cores e estruturas simbólicas que ganham corpo em suas obras
através das mais diferentes técnicas, tais como: a pintura, o desenho, a escultura, as
instalações, os objetos e as gravuras.
A primeira impressão é a de que o artista prepara o observador para adentrar um ambiente
árido, mas, nunca desértico. Esta paisagem particular que se estende atravessando o território
cearense mistura-se com as irregularidades topográficas de Três Corações, no município de
Nova Iguaçu, Rio de Janeiro – dois lugares importantes em que o artista fixou residência.
A obra de Rodriguez trata, sobretudo, de abundâncias e de riquezas interiores com um fervor
e dedicação quase quixotescos. São visões de lugares e de vivências múltiplas, arte e vida
como catalisadores primeiros do ato criativo. Uma espécie de conversão espontânea em
poéticas unicamente conscientes de seu valor e poder, mesmo que formuladas a partir de um
emaranhado de estruturas psicológicas.
Existe uma população diversificada de objetos e formas que são capturados do cotidiano e
transplantados para dentro de um microcosmo onírico. Neste novo ambiente recém-criado
pelo artista a brutalidade aparente dos objetos do mundo ganha novos significados – as
“coisas” passam a traduzir sentimentos e sensações humanas completando um processo
prosopopeico.
A arte de Rodriguez revela essências anímicas que comovem e despertam o olhar do
espectador, uma vez que são encontradas e extirpadas do inconsciente coletivo.
As cores predominantemente avermelhadas de suas obras, de certa forma, estão ligadas ao
tom empoeirado da terra seca e rachada do semiárido de Santa Quitéria, emoldurando as
formas rígidas e rústicas que apontam para uma exuberância neobarroca.
Bruta também é a estrutura formal adotada pelo artista que parece reproduzir em
determinados momentos, por meio do uso contínuo do betume – material fundamental que
acelera o efeito do tempo envelhecendo a madeira e o papelão, a contorção fitomórfica dos
juazeiros, catingueiras e arueiras.


A arte que brota na jacobina


O impacto desta flora rica e diversificada acaba por agregar significados pertencentes a um
sincretismo religioso e ritualístico, amplamente explorado pelo artista, sobretudo, através do
uso irrestrito das espadas de São Jorge em meio aos objetos e ambientes resultando numa
assinatura estilística inconfundível. A arte de Rodriguez é de paz, mas, também sabe ser
guerreira, percebe-se nela o teor metafísico associando-se ao valor estético.  Entre a aspereza
dos espinhos e a aridez da terra fina o artista entoa, vez por outra, uma crítica social – a obra
de Rodriguez também é engajada, não foge à realidade e assume o paradoxo pós-moderno do
Em meio a uma rica imaginária barroca, impõe-se a presença de símbolos mais primitivos
ou mesmo, intuitivos, como os círculos, riscos, rasgos, cruzes marcadas em caixas, capazes
de evocar cânticos austeros, como os oriundos de uma meditação religiosa. A caixa é
confessionário e ataúde, num processo contínuo de ressignificação e ressacralização da obra.
A iluminação encontrada em muitos de seus objetos – oratórios e ex-votos deslocados do
espaço e do tempo, postos em suspensão pela brisa quente que mais se assemelha ao fumegar
de vulcões, reforça o apelo “tragitranscendental” de suas obras.
Debaixo de um forte contraste da luz e sombra repousam estruturas cênicas que inversamente
parecem reanimar as estruturas simbólicas arquitetadas por Rodriguez, anunciando a
irreversível tragédia da vida e da morte.
O artista é um produtor de contradições, estas sim, profundissimamente barrocas na forma, na
estética e por que não afirmar, no sentimento?
A obra de Rodriguez, robusta e altiva como os seus imponentes cavalos de lata, revela os
limites dos seres e das coisas, desnudando solidões quase imperceptíveis, próprias de um
mundo cada vez mais acelerado e omisso. Não esconde e nem camufla a aspereza da morte,
mas, eterniza as pequenas maravilhas da vida.

Renata Gesomino.

Curadora e crítica de arte independente, doutoranda pelo PPGAV-UFRJ.

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